Mulheres brasileiras são as maiores vítimas de crimes de ódio em Portugal

Puta! Piranha! Vagabunda! Safada! Macaca! Ladra de maridos! Volte para seu país! A rotina de ataques é constante às mulheres brasileiras em Portugal. São raros os casos em que elas não ouviram, ainda que sussurrado, um xingamento. Se for mulher, brasileira e negra, a xenofobia e o racismo são ainda mais violentos. Por vergonha, medo e insegurança de viver num país que não é o seu, muitas se calam. Mas uma palavra une a todas: resistência.

Não há exagero nos relatos de discriminação. Todas as pesquisas apontam que as mulheres brasileiras são as maiores vítimas de preconceito em Portugal. O mais recente levantamento da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial, que funciona junto do Alto Comissariado para as Migrações (ACM, I.P.), referente a 2021, revela que os brasileiros, no geral, são os que mais apresentam queixas contra xenofobia e racismo: 26,7% do total. Quando os dados são abertos por gênero, 45,9% das reclamações são de mulheres brasileiras e 33%, de homens. Estudo realizado pela ONG MigraMyths, em parceria com a Casa do Brasil de Lisboa e a República Portuguesa, indica que 58,2% das vítimas de discursos de ódio são mulheres brasileiras.

“Toda tapadinha”

Professora, atriz e cantora, Joana Angélica da Costa, 55 anos, também se deparou com a discriminação por ser brasileira em um relacionamento. O namorado até lhe apresentava aos amigos e aos familiares. Mas o primeiro sinal do preconceito veio por meio de um comentário da irmã dele. “Estou aqui com o Paulinho e a namorada dele, é brasileira, mas é ótima.” O namoro durou um ano e meio. Nesse período, ela conheceu os filhos e a ex-mulher dele. Foi em uma das festas que frequentavam que se deu conta de como era vista. “Todos perguntavam quando a gente se casaria, ainda que o casamento não fosse algo importante para mim.” Já no carro, de volta para casa, ele quis dar a ela uma resposta sobre as indagações dos amigos. E disse: “Eu até me caso com você se tirar a cidadania portuguesa”.

A professora respondeu que aquilo não estava em jogo, pois, em nenhum momento, pensou em se fixar definitivamente em Portugal, para onde foi com o intuito de estudar — fez mestrado e doutorado. “Ele gostava tanto de mim, que até se casaria comigo para me dar cidadania, uma cidadania da qual nunca falei que tinha interesse”, conta. “Com essa conversa, entendi que o preconceito é uma coisa que está tão impregnada, que ele achava que me salvaria ao me dar a cidadania, que seria uma prova de amor.”

A cearense Karol Ximenes, 40, está há sete anos em Portugal. Jornalista e empreendedora, reconhece que foi uma luta conseguir alugar um apartamento em Lisboa. O maior problema: ser mulher brasileira. “Todas as vezes em que ligava para uma corretora, bastava a pessoa do outro lado da linha ouvir o meu sotaque para dizer que não tinha interesse em fechar negócio.” As agressões foram tantas, que ela pediu ao marido que assumisse a tarefa. Entretanto, foi somente por meio de amigos que conseguiram alugar a casa em que vivem hoje.

“Preconceito existe, às vezes, nos mínimos detalhes”, lamenta. “Lembro do caso de uma vizinha minha, sempre gostou muito de mim e do meu marido. Numa ocasião, estávamos saindo para uma festa e ela falou assim: ‘Ah, outro dia, fui para casa de não sei quem, e encontrei lá uma moça, uma rapariga, e eu nem sabia que ela era brasileira. Não parecia brasileira.’ E eu perguntei: ‘mas por quê?’ E ela disse: ‘eu só notei quando ela falou. Toda tapadinha.’ Ou seja, estava sem decote. É um estigma”, detalha.

Caminho inverso

A antropóloga e jurista Manuela Martins, 62 anos, nasceu em Portugal, mas foi para o Brasil, com a família, com apenas um ano de idade. Aos 59, ela resolveu voltar às origens para que o filho André, 24, pudesse estudar. “Nunca fui uma portuguesa ausente de Portugal, tenho família no país”, diz. Quando chegou, foi morar com uma prima. A convivência com a parente escancarou o que há de pior em termos de preconceito. A prima se mostrou xenófoba e racista, e tinha horror a mulheres brasileiras, as quais ela classifica como “ladras de maridos”.

“Minha prima tem ódio absurdo em relação às brasileiras. Fala que são putas, que vêm para Portugal para roubar os homens portugueses, para tirar os homens de suas mulheres”, relata Manuela. “Me sentia, como parente, desrespeitada. Eu dizia: você está falando de mim. Ela respondia: você não é brasileira, é portuguesa. Eu rebatia: sou muito mais brasileira do que portuguesa. Chegou um momento em que houve uma ruptura mesmo. Estou há um ano sem falar com ela e não permito que ela se aproxime de mim. Já tentou, mas não permito”, ressalta a antropóloga.

Manuela viu que o preconceito não se restringia às mulheres. O filho, que é gay, enfrentou sérios problemas quando chegou em Portugal. “Ele desembarcou com uma mala rosa e foi parado pelo pessoal da imigração. Às 5h da manhã do Brasil, recebi mensagens no meu telefone, pois ele estava preso na imigração, sendo obrigado a apresentar uma série de documentos. Fiquei em pânico”, diz. Depois de três horas e muito sufoco, o jovem foi liberado. Não bastasse esse trauma na chegada, o filho da antropóloga presenciou, por várias vezes, a prima dela se referir aos negros como “macacos”.

“Tudo isso me obrigou a sair da casa dela e a procurar um imóvel em Lisboa, onde meu filho foi estudar. Mas não consegui alugar por causa do meu sotaque brasileiro. Assim, divido uma casa com um amigo. E ele sempre enfatiza que não adianta dizer que sou portuguesa, porque não me visto como uma portuguesa, porque tenho tatuagens e falo como uma brasileira”, frisa Manuela, que está fazendo uma ampla pesquisa sobre migração e se diz estarrecida com a forma com que a comunidade LGBTQIA é tratada. “Entrevistei um casal de lésbicas, e é tenebroso o que elas passam. Muito difícil. É a exclusão da exclusão”, destaca.

 

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